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Ana Sofia Cardoso sobre ser correspondente de guerra: “Das melhores experiências profissionais e pessoais”

“Essas mulheres vinham com os filhos pelas mãos e, quando nós dizemos com as bagagens, não. Muitas delas não traziam qualquer bagagem, não traziam mochilas, não traziam uma mala."

Ana Ramos
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Ana Sofia Cardoso falou sobre a sua experiência como correspondente de guerra no podcast “Lugar Marcado”, com Diogo Assunção.

“Das melhores experiências profissionais e pessoais! Eu também vim muito motivada para isso e acho que aconteceu na altura certa. Não a guerra, acho que qualquer guerra acontece na altura errada, mas a experiência profissional acho que sim, acho que foi num momento em que senti que era capaz”, afirmou a jornalista, que esteve na guerra na Ucrânia como correspondente da TVI/CNN Portugal.

Questionada sobre a reação que teve quando recebeu o convite para ir para a Ucrânia durante uns dias, Ana Sofia Cardoso respondeu: “Foi ‘Uau, quero ir’. Estava determinada a ir e, quando voltei da primeira vez da Ucrânia, pensei ‘Eu acho que toda a gente devia ter uma experiência na guerra para perceber a vida do dia a dia”.

Ana Sofia Cardoso recordou, então, a primeira vez em que esteve na Ucrânia, num momento em que ainda estava a aguardar para entrar no país e presenciou a “chegada de centenas e centenas de mulheres vindas da Ucrânia”: “Essas mulheres vinham com os filhos pelas mãos e, quando nós dizemos com as bagagens, não. Muitas delas não traziam qualquer bagagem, não traziam mochilas, não traziam uma mala”.

“Traziam apenas os cartões de identificação delas e dos filhos e vinham para um terreno completamente desconhecido, para um futuro que não sabiam sequer o que é que era, mas que percebiam que poderia ser menos grave sujeitarem-se a um mundo desconhecido do que ficar na Ucrânia”, descreveu ainda Ana Sofia Cardoso.

“É horrível, porque tu vês as pessoas na estação de comboios… estive ali cinco horas, em temperaturas negativas. Cinco horas a olhar para a cara destas mães com os filhos, dois e três filhos, em que filhos cuidam de filhos e em que mães não sei como se desenvencilham, porque aqueles filhos… para já, quando dizemos que não sabem para o que é que vão… sabem”, continuou Ana Sofia Cardoso.

“Sabem que já saíram das suas casas, sabem que já fizeram uma viagem longa de comboio, sabem que estão cansados, sabem que nessa viagem longa de comboio ouviram barulhos, em que no comboio, a luz apagou-se várias vezes e as crianças têm medo do escuro. Sabem que espreitam pela janela e veem muitos militares, o que é estranho. Sabem que as mães estão infelizes, que os pais ficaram para trás, que os avós, tios e todos os familiares homens com mais de 18 anos ficaram para trás e não sabem quando é os vão ver. Portanto, quando nós dizemos que as crianças não sabem o que estão a enfrentar, claro que sabem. Sabem demasiado”, acrescentou Ana Sofia Cardoso.

“Isto, por acaso, fez-me muita impressão, porque nunca tinha racionalizado isso, que é: Nós dizemos que as crianças não percebem, não têm uma imagem clara daquilo que está a acontecer. Mas elas, mais do que nós, acho que elas percebem literalmente a insegurança que estão a viver”, considerou Ana Sofia Cardoso.

Ana Sofia Cardoso referiu que se questionou quanto ao que faria na mesma situação: “Eu perguntou-me como é que é possível que uma maia que saia do seu país sem o apoio de ninguém e que vá com os filhos pela mão sem saber onde é que vai dormir nessa noite, porque as pessoas não sabem onde é que vão dormir nessa noite, nem sabem quando é que vão dar de comer aos filhos naquele dia nem nos próximos, nem durante quanto tempo… como é que essas mães conseguem ter a lucidez suficiente e a calma suficiente para tentar tranquilizar os filhos? Eu não vi tranquilidade nem na cara das mães, nem na cara dos filhos”.

“Ainda não percebi muito bem como é que [esta experiência] mudou, mas, quando voltei, fez-me dizer que acho que toda a gente deveria estar uma vez na vida na guerra. O conhecimento só por si já é uma mudança. Não consigo dizer muito bem como é que isso se reflete no dia a dia, mas, se calhar, eu encaro as coisas de uma outra maneira”, comentou Ana Sofia Cardoso.

“Se calhar, tenho mais paciência para o meu filho e penso: Se aquelas mães têm tanta capacidade para lidar com aquilo, porque é que nós não conseguimos ter capacidade para lidar com uma criança que é tão ingénua e que é normal cometer tantos erros?! Porquê que vamos estar a massacrar a criança, castigar, berrar, chatearmo-nos com ela?! Temos de levar a vida com outra naturalidade. O problema não é a criança ter feito algo de mal, o problema é tudo o resto que existe”, partilhou ainda Ana Sofia Cardoso.

“Quando estive nas guerras, fi-lo muito por uma questão de justiça social, no nosso dia a dia. Debates, por exemplo, fazemos por uma questão de verdade, de esclarecimento, de alerta das consciências dos pontos de vista, para suscitar sentido crítico nas outras pessoas”, rematou Ana Sofia Cardoso.